sábado, 4 de outubro de 2008



Cinco de Outubro

Tantos RRR

Antunes Ferreira
O avô
Reinaldo tinha estado na Rotunda. O que não parecia de modo nenhum entusiasmante, muito menos motivo para aplausos. Quantos cidadãos o tinham feito? Milhentos. Mas, aqui, um pormenor. O homem (na altura ainda um rapazote) tinha estado na Rotunda de 4 para 5 de Outubro de 1910. Assim é que estava correcto. E ele e mais umas poucas centenas de militares e civis comandados pelo Machado dos Santos, decididos a vender cara a vida, ainda que não soubessem muito bem porquê. E para quê? Mas, soltavam vivas constantes à República.


O avô Reinaldo era carbonário. Ou melhor, era um gaiato que tinha a mania de ser membro da sociedade secreta (?), tinha 16 anos espigadotes e esforçava-se desalmadamente por exibir um bigode – que ainda não surdia. Uns pelos salteados por cima dos beiços, outros semeados por mão incerta pela cara magra e ossuda. Em casa, herdara Rogério do pai Raul uma gravura amarelecida que se dizia era do avô quando jovem.

Nisto de fotografias, sabe-se lá. Pois se até nas estátuas… Vai-se a ver e o fulano que está plantado no Rossio e que dizem que é o D. Pedro IV, afinal não é. Imbróglio? Verdade, verdadinha, o senhor que está lá no cimo do pedestal, há uma porrada de anos que está a fingir que é – e não é. Por miúdos: não era. Mas, depois, foi e agora é.

Rogério está no café sobrevivente da praça, o Nicola, mais precisamente na esplanada. Acabara de ler a bíblia benfiquista, entenda-se, A Bola, e esvaziara a chávena da bica. Por que raios bica? O pai explicara-lhe que fora um senhor dono da Brasileira que decidira incentivar os clientes a beber café. Mas, a mistela era amarga. Muitos torciam-lhe o nariz.

O pai Raul pormenorizara que o tal cavalheiro pusera – ou mandara pôr – em cada mesa um letreiro que rezava BEBA ISTO COM AÇÚCAR. Está-se mesmo a ver, não está-se. BICA. Devaneia, como habitualmente. O gajo que lá está em cima era para ser o Imperador Maximiliano do México. Mas não fora. As más línguas, pelo menos, asseveram que quando a estátua chegara a Lisboa e enquanto esperava por embarque para o seu destino final, o monarca tivera também o seu destino final, porque fatal. Tinha sido assassinado.


No País da tequila a estátua já não interessava a ninguém. Pelo contrário, seria só despesa. O frete marítimo – caro. E, depois do golpe, não havia caballero que a quisesse. Donde, quedara-se pelo cais, abandonada, o bronze a caminho da sucata. Como tal fora comprado pela Câmara lisboeta que decidira que servia muito bem para Pedro IV, até tinha na mão uma carta que todos jurariam a pés juntos que era a constitucional que o rei liberal se vira obrigado a outorgar. E, lá no alto, nem com binóculos, não se distingia entre o mexicano e o luso. De resto, ambos imperadores.

Reinaldo, Raul, Rogério, tudo nomes começados por R, de República. Rogério consulta o relógio, quase uma da tarde. Cronómetro de pilha, chinezíssimo, mesmo assim obra asseada, oferta da mulher, Regina. Outro R. Tem de ir andando, apanhar o Metro para Odivelas, é lá que está o T3, andar comprado em regime de cooperativa no princípio dos oitentas. Agora, reformado, vem de manhã até ao Rossio, jornal, bica e regresso ao lar. E nada de muitos atrasos, Regina não brinca em serviço.

Pois hoje é o 5 de Outubro deste ano. Daí o recordar o avô Reinaldo, a Rotunda, a Revolução, a República. RRR a dar por um pau. Às vezes, raras, ia ao António José de Almeida, garantidamente a estátua dele era mesmo dele. No tempo da outra senhora, havia por lá sempre sarrabulho. Coisas, feitios, polícias. Estado Novo, bastonada, correrias até à Avenida da... República.

Hoje volta a penates sem glória nem comemoração, estátua só a falsa do largo D. Pedro IV. Como Judas Iscariotes, sem trinta dinheiros, mas disso não precisa ela, não tem gastos, nem família, nem paga IRS. E o subprime não a incomoda, muito menos o plano do tal Paulsen, lá pelos Estados Unidos, imperialistas no dizer do pai Raul e dele próprio, Rogério. Aliás, praça com tal nome poucos a conhecem.

É o Rossio que, o Marquês de Pombal, (na escola levara umas fartas palmatoadas por dizer do. Do, só os pombos e as pombas, dizia a dona Ofélia, patroa e utente da menina dos cinco olhos) mandara baptizar como dos Chapeleiros, pois obrigara toda a colectividade dos feltro, palhinhas e afins a mudar-se para lá. Democrata, o Sebastião José de Carvalho e Melo. Na Rotunda que é só estação de Metro, lá em cima é Marquês do, isto é, de Pombal. Mandada construir com dinheiros de peditório público, iniciativa longa do Diário de Notícias. Que, como não chegara para o mármore, quedara-se pelo lioz.

No Metro consegue lugar sentado, a linha amarela é muito traiçoeira, como as de outras cores, mas há momentos de sorte. Na sua frente vai uma velhota – ele, Rogério, só tem quase setenta – de idade indefinida, tricotando placidamente. Coisa bonita de se ver, as agulhas certinhas com as mãos, complementos destas, extensões sem músculos, mas nervosas.


Ela pergunta-lhe as horas, e já agora, quantos são hoje. Cinco. Cinco de Outubro, minha senhora. Nem me apercebera, diz ela. Foi o dia em que o Relvas proclamou a República, nos Paços do Concelho. Relvas? Outro R, pensa Rogério em voz alta. Curioso.

2 comentários:

Kim disse...

Bela maneira de recordar a Implantação do R.
Um abraço do R(ibeiro)

Rico Armando disse...

Também faço parte da seita dos Rs. Considero que a República foi um enorme passo em frente no nosso País. Miguel Bombarda, Afonso Costa, Teófilo Braga, José Relvas, Cândido dos Reis, Machado de Castro, António José de Almeida e tantos outros cumpriram o que se propunham fazer. Depois, é que não souberam chegar a bom porto...

Gostei da ideia, Antunes Ferreira. É diferente por ser inédita. Continue, amigo.